segunda-feira, 23 de setembro de 2013

'O mundo tornou-se idólatra do dinheiro', critica o papa


Por José Manuel Vidal
O papa Francisco aterrissou neste domingo (22), na bela ilha da Sardenha. É sua segunda viagem a uma ilha, após Lampedusa. Veio para ouvir a sua gente desesperançada por não ter trabalho. E após ouvir os seus habitantes, deixou de lado seu discurso preparado e falou de improviso. Denunciou o “sistema globalizado que coloca o dinheiro no centro” e pediu às pessoas para que lutem, não se resignem, “não se deixem roubar a esperança” pelo ídolo do dinheiro.

O pequeno avião chegava ao aeroporto de Cagliari. Sorridente, como sempre, Francisco desce as escadas e saúda a comitiva que o espera, entre os vivas das pessoas que gritam: Francesco, Francesco.

Recebe um ramalhete de flores como sinal de boas-vindas, entra em um carro pequeno de cor azul (parece um Ford Focus) e saúda as pessoas da janela e com o braço para fora.

Também os carros da comitiva eram diferentes. Já não são limusines, mas utilitários pequenos e médios de toda cor e condição. O exemplo do Papa contagia. É o efeito Francisco avassalador.

Enquanto o papa se desloca do aeroporto, as ruas de Cagaliari já estão repletas de pessoas, com bandeiras, desde as primeiras horas da manhã. O primeiro palanque a partir do qual o Papa saúde os sardos está junto ao mar. Entre o público, muitos moradores do lugar, vestidos com seus trajes típicos coloridos.

Após a "encíclica" de Lampedusa, vem a da Sardenha. E, de fato, a primeira coisa que faz é dirigir-se, do aeroporto, ao centro de acolhida de imigrantes. Não se esquece deles, leva-os no coração, compartilha sua sorte e denuncia sua situação.

Francisco chega às ruas de Cagliari em seu papamóvel aberto. Como sempre, pára, beija as crianças e aperta mãos e saúda sem parar. E até pega no ar um envelope que alguém lhe joga. Bandeiras, entusiasmo, aplausos e camisetas para o papa torcedor.

Um palanque realmente sóbrio, que não destoa da difícil situação econômica da ilha italiana, arrasada pelo desemprego, recessão e crise.

E começa o primeiro encontro com o mundo do trabalho. Com testemunhos de operários que estão há anos desempregados. E pedem ajuda para “esta ilha martirizada”. “A falta de trabalho produz medo e provoca desilusão”, disse um operário. E acrescenta: “Uma sociedade que não oferece trabalho é injusta”. E pedem-lhe que interceda junto às autoridades. E se emociona: “Não nos deixe sozinhos”.

Outro testemunho, de uma mulher de uma cooperativa social. Enquanto as pessoas, emocionadas, choram de tristeza pela falta de futuro e de alegria pela presença do papa da esperança.

E um terceiro testemunho, de um jovem camponês em nome de todos os agricultores e criadores de gado da ilha. “Nosso trabalho é considerado arcaico e sem futuro”. “Apesar das dificuldades, olhamos para o futuro com esperança e gratidão”. “Queremos ser anunciadores do Evangelho em nossos campos e lhe pedimos que abençoe o nosso trabalho, a nossa terra e a nossa esperança”.

O discurso do papa

E após ouvir as pessoas, o papa pronuncia o seu primeiro discurso na ilha da Sardenha, entre as ovações dos presentes. Com gesto sério e concentrado. “Esta visita começa exatamente com vocês, o mundo do trabalho”.

“Desejo expressar-lhes, sobretudo, a minha proximidade, especialmente diante da situação de sofrimento de tantos jovens sem trabalho”.

E o papa deixa de lado os papéis, improvisa e se emociona:

“Meu pai, jovem se foi para a Argentina, cheio de esperança para fazer as Américas e sofreu a terrível crise e perdeu tudo. Eu ouvi na minha infância falar desta época na minha casa, ouvi na minha casa falar desse sofrimento, que conheço bem”.

“Peço-lhes coragem. E que esta palavra não seja uma palavra bonita, mas passageira. Não seja apenas o sorriso de um empregado cordial da Igreja, que vem e lhes diz: coragem! Não, não quero isto”.

“Esta é a segunda cidade que visito na Itália: as duas são ilhas. Na primeira, vi o sofrimento de tantas pessoas que buscam, arriscando a vida, dignidade, pão e saúde. São os refugiados”.

“E vi a resposta daquela cidade que, sendo uma ilha, não quer se isolar e recebe os refugiados, os faz seus e dá um exemplo de acolhida”.

“Aqui, também encontro sofrimento, que enfraquece vocês e acaba roubando suas esperanças. Um sofrimento, a falta de trabalho, que leva (perdoem-me por estas duras palavras, mas é a verdade) vocês a se sentirem sem dignidade. Onde não há trabalho falta a dignidade”.

“E este não é um problema só da Sardenha, da Itália, da Europa. É a consequência de um sistema econômico que conduz a esta tragédia. Um sistema econômico que coloca no centro um ídolo, que se chama dinheiro. E Deus quis que, no centro, no centro do mundo, não estivesse um ídolo, mas o homem e a mulher, que levam adiante o mundo com o seu trabalho”.

“Neste sistema sem ética, no centro, há um ídolo e o mundo tornou-se idólatra do dinheiro”.

“E para defender este ídolo ajudam o centro e provocam a queda dos extremos mais frágeis: os idosos... Este mundo não é feito para eles... eutanásia escondida... E caem também os jovens, que não encontram trabalho".

“Este mundo não tem futuro, porque as pessoas não têm dignidade sem trabalho. Este é o seu sofrimento”.

“É uma oração: trabalho, trabalho, trabalho. Trabalho quer dizer levar o pão para casa, amar, dignidade...”.

“E para defender este sistema idolátrico instala-se a cultura do descarte: descartam-se os idosos e os jovens”.

“Queremos um sistema justo. Não queremos este sistema econômico globalizado que nos causa tantos prejuízos. No centro, devem estar a mulher e o homem, não o dinheiro".

“Eu havia escrito algumas coisas para vocês, mas, ao vê-los pessoalmente, me vieram estas palavras. Entregarei ao bispo o meu discurso. Preferi dizer-lhes o que me sai do coração ao ver vocês neste momento”.

“É fácil dizer não percam a esperança. Não se deixem roubar a esperança. A esperança é como as brasas sob as cinzas. Ajudemo-nos com a solidariedade, soprando, para que venha a esperança...”.

“Devemos acalentar a esperança coletivamente. A esperança é coisa de todos”.

“Mas sejamos astutos. O Senhor nos adverte que os ídolos são mais astutos que nós. Convida-nos a ter a astúcia da serpente e a bondade da pomba. Chamemos as coisas pelo seu nome. Lutemos para que no centro esteja não um ídolo, mas a família humana”.

“Gostaria de terminar rezando com todos vocês, em silêncio. Direi o que vai brotando do meu coração. Em silêncio rezem comigo:

Senhor Deus, olha-nos.

Olha esta cidade e esta ilha.

Olha as nossas famílias.

Senhor, não te faltou o trabalho de carpinteiro. Foste feliz.

Senhor, falta-nos trabalho.

Os ídolos querem roubar-nos a dignidade.

O sistema injusto quer roubar-nos a esperança.

Senhor, não nos deixe sozinhos.

Ajuda-nos a nos ajudar entre nós.

Que deixemos o egoísmo e sintamos no coração a força do povo que quer seguir em frente.

Senhor Jesus, que não nos falte o trabalho; dá-nos trabalho e ensina-nos a lutar pelo trabalho.

Muito obrigado e rezem por mim”.

E as pessoas, na praça, choram, após ouvir o discurso do Papa contra o sistema capitalista injusto. Um discurso improvisado, que brotou do coração de pai. Sem lugares comuns. Com denúncia clara e contundente. E com o anúncio da esperança e da luta comum para reconquistar a esperança.

Um discurso tão pessoal que o Papa fez alusão à própria experiência familiar. Um discurso que só um Papa carismático como ele pode fazer. O discurso que brota da alma diante dos sardos desempregados.
Religión Digital, 22-09-2013.

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